sexta-feira, 16 de julho de 2010

Fantasma

As extremidades das mãos tornam-se avermelhadas, bem como o nariz, que se observa então fixamente ao espelho.As orelhas, geladas, buscam esconder-se no grande cachecol verde vessie. Fixamente a observar a própria imagem, os olhos assistem a superfície dos próprios tomarem-se pela camada aquosa e refletiva que, gradualmente, brilha mais e mais. É chegado o inverno.

Escondes-te em teu quarto, desenhado em tons acinzentados da penumbra, sentado à cadeira fúnebre de capa cor chumbo, a observar as rugas do teu lençol sobre tua cama vazia. Não se pode dominar a luz da lua que entra pela porta da varanda a revelar também as rugas pelo teu rosto.
Assim também, não se pode dominar o tempo. Fitas o velho relógio ao canto escuro do teu quarto, lamentando-se por não ter consumido com ele há muito tempo. A primeira lágrima se joga ao desenho da tua pálpebra inferior. Sentes que seja uma lança, em direção ao peito teu.
Olhos que se assustam pelo sussurro do relógio de cordas esquecidas: meia noite.

Sucumbe aos teus joelhos, e levanta-se, caminhas em direção a janela. Enxerga as luzes da rua de baixo, refletindo sobre o paralelepípedo. Cachorros latindo para o dançar das luzes dos lampiões, que felicitam-se pela presença da brisa que vem de longe, adentro do mar. Trazem tantas mensagens. Você nunca soube escutar.
Passaste tua vida inteira a ler poemas milhões de vezes repetidos, aprendendo nomenclaturas e respeitando conceitos mundanos, mas teu peito sempre fechado às mensagens do mar, que por toda a vida esteve diante dos teus olhos, teus ouvidos, teu coração.
Mas agora eu te vejo. Eu consigo te ver e a luz de teu peito resplandece aberto, emocionado. Sorri para os carinhos que faz o mar, apaixonado, pela areia da praia. Vejo-te sorrir. O relógio deixa de tocar. Mais uma lágrima.

As tuas mãos acostam-se a janela, levantando o queixo para assistir as estrelas que acabara de ver, refletidas ao mar. Em teu peito, nota que se souberes distinguir a beleza de um oceano, logo notará em tudo o que é de natureza pura e criada pelo cosmo. Se não tivesse visto isso perante a foice da morte, teria vivido esse tempo que lhe fora dado de maneira que conhecesse o que de fato lhe fora proposto pela alma. Mas deveras, tivera se esquecido de quem você é.
O menino que brinca ao mar, aquele que teu cérebro está a imaginar, foi você. Teus braços e ombros corados pela cor do sol, o que tanto você tem se negado atualmente. A luz para ti, hoje, é aquela azulada acostada em sua escrivaninha, que mira teus livros empoeirados que evocam ciscos ao ar para serem evidenciados pela frieza desta luz. Onde foi que escondeste o riso exteriorizado da criança que tivera sido? Tens te separado do que foi, como se tivera sido outra pessoa.
Reconheço, que tua maior tristeza neste momento é o fato de que eu tenha partido. Vejo dentro de ti que não sabe que estou a te observar, que estou a te cuidar. A mexer e brincar com as cortinas, para que veja a beleza e a delicadeza do vento que a tudo acaricia sem ser notado, reconhecido. Estou dando corta ao relógio neste momento, enquanto abandona a janela e esconde-se em nossa cama. Amanhã, ele soará como novo, e você notará que o tempo é tão jovem quanto ele, que ainda muito te resta, ao tempo que existe em sua alma. Transforme-o em eterno, intensamente.

No quarto ao lado, limparei nosso velho piano e tirarei o pó dos pedais. Ao acordares amanhã, as cortinas estarão todas abertas, e o sol revelará os nossos dias mais felizes a acariciar as suas teclas. Retornará ao seu banco, e novamente tocará as suas canções mais felizes. Seu sorriso amanhã eu poderei novamente assistir.
Não sou apenas um fantasma, nem estou esperando para que a morte também o venha buscar. Sou uma fantasia, uma mágica em vestes de um anjo viajante, longe dos céus, que brinca e colore hoje o teu ânimo. Estou determinada a ver teu sorriso tão intenso quanto nunca pude enquanto em existência terrena.
Ao amor, não necessita que minha pele já padeça ao lado da tua. O sentimento tem transcendido, e mesmo que o teu sofrimento seja verdadeiro, todos nós e eles também, teremos o mesmo fim. O tempo de vida é tão único, e suficiente para que veja o teu coração. Muitas vezes é preciso fingir que nada vemos, nos assumirmos cegos superficialmente, para dar a voz ao nosso coração.

Assisto-te, hoje, nascer.