quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O tempo das Cantigas


Passando lentamente pelos pontos de memórias do passado, parei no sinaleiro e assim também meu mundo parou. Aqueles dias de infância então voltaram. A simpatia nos olhos, despreocupação com “os outros”. A via rápida às palavras, às atitudes, a ausência de pensamento cognitivo comandante. O arranhão que sangrou um pouco numa tarde de sábado naquele Ficcus, a árvore perto da varanda. E todo aquele desespero a pensar que o mundo acabaria.
A partir dos anos, vamos trocando nossos carros por mais velozes, menos coloridos e mais funcionais. Os que acreditamos nos levar mais longe. Olhando para os lados, as pessoas apressadas com seus carros pretos, ainda no fundo acredito que desejam ser felizes. A pressa senta no banco do passageiro. E pensar que começamos tudo na lenta motoquinha.
Aos poucos, trocamos nossos sorrisos e alegrias pela velocidade e preocupação única com o Destino, sem observar o itinerário.
As brincadeiras na rua, a vontade de estar andando em todos os matagais adentro. O café da vovó com ceroula virada e leite a vontade. Tempos onde as datas ainda eram importantes. Os aniversários eram como, faziam-me sentir como, se houvesse uma grande conquista. Os balões dos cantos da garagem, os enfeites pelas paredes. As pessoas iam chegando, e pela porta da frente oferecendo um grande sorriso no rosto e um pacote colorido entre os braços: “Cadê a Paulinha?”. Todos estavam cheios de vida, e fazer mais um ano antigamente era coisa de gente de sorte.
As paredes branquinhas de casa eram mais bonitas depois de um toque de canetinha preta, mesmo tendo que pagar um preço alto depois. As visitas iam chegando e dando risada. Minha mãe, de cabelos presos e mangas arregaçadas, ajuntava restos de balões estourados e cuidava dos docinhos, beijinhos e nunca se esquecendo daqueles cajuzinhos com açúcar. Recebia os convidados, que com os olhos já buscavam um lugarzinho pra sentar e esperar pelos parabéns. Ela não esqueceu de ligar para a Laurinha, a Fafá, Suzel.

15 anos depois, EU pergunto: “cadê a Paulinha?”.
Para qual lugar foi aquela menina que resumia sonhos em realidade sem responsabilidade? Nesse sinaleiro da vida, eu descobri que lá ela ficou, presa no ano de 1994.
O sinal abriu...

No momento do lançar de um verde, as buzinas arrebentaram para cima do meu carro, e diziam “Saia da frente, precisamos correr!”.
Na vida, o mundo de pessoas necessita correr.
Quantas pessoas atrás de mim se perguntam: “para onde foi a criança alegre e despreocupada em mim?”
Quase que não ouvindo as buzinas ao redor de mim, segui aquele mesmo trecho, mas, dessa vez, de vagar. Seremos hoje expostos as mesmas experiências, mas como adultos encaramos de forma diferente. Assim como resolvemos com mais destreza, menos nos importamos com o que isso nos traz afinal.
A árvore da esquina, aquela que dormia quando a gente passava a mão, não existe mais. O terreno de flores de beira de estrada onde passávamos momentos brincando depois da aula hoje é uma grande loja de peças de carro. Aquele cachorro que acompanhava a gente depois da aula, até em casa, ninguém mais teve notícias. A velha senhora que nos dava docinhos durante o recreio, foi levada pela sua hora. Qual foi o destino daquelas pessoas que, como eu, acreditavam que a infância seria para sempre? Para onde foi você, Ana Zulnara? Camila Anderle e Rodrigues? Onde foram esses que se transformaram em homens; o Pedrinho, o Mateus, Felipe Costa, Eduardo? Andariam vocês com tanta pressa que não poderiam parar num desses sinaleiros da vida e lembrar de tudo o que fomos?
O pátio do colégio Santa Maria já é coberto. Lembrei daquela época onde as crianças se sentiam orgulhosas ao se vestirem de caipiras e era uma honra ser escolhido para ser a noiva do casamento caipira. Peguei-me a imaginar se as crianças ainda não podem comprar quentão, e se hoje ainda se fazem as barracas dos recadinhos de amor. Se o pátio na frente da gruta eles ainda utilizam, e por quanto mais tempo eles vão manter essa celebração. O pequeno brotinho de arvore ali da frente hoje é uma árvore grande e vistosa, enquanto no momento que passo, dois serralheiros estão desenhando nela o seu fim, enquanto outro pendura a placa de “Em breve, Aqui...”.
A pracinha hoje tem chafariz e bambus desenhados pelas luzes verdes pela noite. Novas estátuas foram postas, e bandeiras indicando nosso patriotismo. Os bancos foram reformados e bem estruturados, projetados sobre as sombras das árvores. Mas, me pergunto por um segundo, para onde foram todas aquelas pessoas?
Para onde foram as pessoas tomando um chima às quatro da tarde, mesmo em banquinhos parcialmente quebrados? Para onde foram aquelas crianças penduradas nas balanças, aquele som agradável de risos e imagens de sorrisos pelo ar?
Não encontrei mais o senhor que nos vendia algodão doce, e já não vejo mais aquelas pequenas barraquinhas de duas rodas de cachorro quente com o toldo listrado de vermelho e branco. Hoje, elas são como traillers, cabendo 5 ou 6 homens dentro.
As cores dos prédios mudaram, e novos surgiram com um tamanho maior. As vezes o sol se põe antes, escondendo-se atrás de algum desses grandes construídos recentemente. A construção abandonada do shopping hoje é centro principal de comércio e encontro da cidade. Novos nomes pelas avenidas são vistos, e os antigos estão deixando o mercado. O brechó Vogui fechou suas portas. Mas, a sorveteria Neve ainda está lá, e hoje eu sei exatamente como chegar, quando que antigamente não sabia em qual lugar da cidade eu estava. Mas, o sorvete daquela época parecia mais gostoso. A família estava toda lá. Mesmo que a “Neve” esteja ainda lá, já não podemos ir todos juntos. E, As pessoas continuam a correr.
Por onde andam suas vidas, a que lugar foram presas e deixadas para trás enquanto assumindo algo de menor importância?
Sinto meus dedos enfraquecerem, e busquei um acostamento. Olhei em direção à rua, os carros desciam e subiam rapidamente das elevações da estrada. O plano de fundo parecia que resguardava até uma atmosfera diferente. E aquelas árvores a todos os dias observaram essas mudanças de perto... e eu, onde estive escondida todo esse tempo? Como não pude perceber que eu estava envelhecendo e tudo foi deixado para trás? Os seres humanos se prendem a essa linha do tempo e acreditam, certos de que estão cobertos de razão, que se vive uma faze de cada vez e, depois de vivida, é guardado em um arquivo para nunca mais ser resgatado. As pessoas têm medo de memórias de infância arquivadas em um lado sensível dentro de si, mas não tem medo de se jogar ao futuro sem olhar para trás.
Crianças não têm medo de amar, não tem medo de andar no muro e tem mais equilibro físico. Criança não tem vergonha de pedir, de abraçar e chorar.
...
A Infância
A infância dentro da gente é um eterno galpão colorido e enfeitado com balões e rendas, com carros antigos e conservados de cor azul claro ou amarelo. Galpão com rodas d’água, flores do campo e toca fitas. Um carrossel no canto direito, três motocas no canto esquerdo. Mesas de desenho, baixinhas, ao centro. Canetinhas e lápis de cor de cores inimagináveis, bonecas e carrinhos espalhadas pelo chão. Araras cheias de roupas de fantasias, narizes vermelhos de palhaço em uma caixa, junto de dentaduras falsas de vampiros. Cortinas vermelhas de veludo, tapetes imitando pele de urso. Máscaras coloridas, purpurina e cola colorida brilhante. Bolinhas de sabão espalhadas pelo ar, misturadas com aquelas risadas, aquela ausência da seriedade de um sério compromisso. O toque no pianinho, o arranhar de um violino, o riso em pedido de “desculpa, vou tentar fazer de novo!”. A boneca bárbie vestida de cinderela, o cavalinho de pau, na cor azul. O batom passado na roupa, a penteadeira com maquiagem falsa, pequenas meninas sentadas, assim ao olhar o dentinho novo ao nascer. A infância é um circo sem sentido denotativo. É alegria pintada pelo ar, cores enfeitando o lugar. A luz da lua é sorridente nos olhos de uma criança, e o sol é capaz de abraçar.

Faz parte de nós sermos pequenos um dia. É parte de nossa felicidade descobrir admiração pela nossa infância, e lembrar. Não ter medo de chorar ao lembrar de amigos e situações que passaram. Cuidados maiores dos nossos pais dirigidos a nós, cantigas de ninar de gente que se preocupa até mesmo com o nosso sono.

Mesmo que tenha que fechar meus olhos a imaginar, ainda quero acreditar em sonhos como fazia aquela criança. Quero lembrar dos dias que fui observada como pequena e fraca, e poder sem culpa almejar a liberdade para ser feliz enquanto viva eu estiver, enquanto eu viver o meu "para sempre".